quarta-feira, 4 de junho de 2008

A proposta

Rapaiz! A minha dívida deve ser gigantesca, a julgar pelo que estão me fazendo pagar.
Essa minha mania de ficar procurando analogias pra explicar as coisas, me fez procurar alguma que demonstrasse o que vem me acontecendo. Pensei naquele boneco de plástico, inflável, sem pernas, com a barriga chegando até o chão, aumentando de diâmetro desde a cintura. Na parte de baixo ele tinha um peso (acho que era um compartimento cheio de areia), que o mantinha de pé, impedindo-o de tombar. O que mais me lembro era do sorriso idiota, na cara redonda, gozando com a cara dos que lhe davam porradas, tentando derruba-lo, sem conseguir. O chamavam de joão bobo. Ele tomava uma porrada na orelha direita, tombava pro lado esquerdo e voltava pra vertical. Uma bifa na orelha esquerda o tombava pro lado direito e voltava a ficar em pé, quase imediatamente. Enfurecido, o agressor lhe enfiava uma porrada nas fuças, ele tombava pra trás e voltava a ficar em pé, mostrando aquele sorriso imbecil. Pois é, estou como esse boneco, tomando porradas, caindo e voltando a ficar de pé. A diferença é a falta de sorriso, em mim, embora não falte a imbecilidade.
Quando foi diagnosticado que eu estava com ELA (esclerose lateral amiotrófica), que causa degeneração progressiva dos músculos e é fatal; minha filha disse que, como as tentativas pra me derrubar não tinham tido êxito, o, ou quem, tentara me derrubar, decidira me contaminar com essa doença, que não oferece a menoras chance de cura e, de contrapeso, vai paralisando o indivíduo, até que ele só consiga mexer os olhos. Afinal, o joão bobo vai tombar e não se levantar mais.
Eu estava conformado, uma vez que não havia nada a fazer. Por outro lado, já fazia algum tempo que eu considerava que, já que não estava tendo chance de realizações prazerosas, que sobravam motivos pra sofrimento; o melhor seria morrer. O que me enchia o saco, era o preço que estavam cobrando pela minha morte: o definhamento prolongado, a paralisia progressiva, até atingir o objetivo. Achei que era um preço exorbitante, mas como não tinha a quem reclamar, nem como deixar de pagar; resolvi me conformar e não aumentar a apurrinhação com revolta e reclamações.
Motivos pra reclamar não me faltavam. O agressor, não se conformava em só me dar porradas; quando achava que eu poderia cair de vez, me animava com promessas de algo bom. Eram só promessas, pra me reanimar, pra que eu pudesse sentir a próxima porrada com toda a intensidade que ela pretendia impor.
Essa somatória de evidências me mostravam que a intenção era me cobrar algo que estava devendo, embora eu não fizesse a menor idéia do quê.
Eu estava conformado, sentindo a desativação progressiva dos músculos e, conseqüentemente, dos movimentos; quando, na sala de espera, aguardando ser chamado pra mais uma consulta médica; um cara me abordou dizendo que tinha uma proposta pra me fazer e que era do meu maior interesse. Nessa hora me chamaram pra consulta e o cara disse que me esperaria na saída.
Quando saí, o cara veio todo amistoso pro meu lado, me perguntou como havia sido a consulta, como eu estava me sentindo e sugeriu que fossemos até um lanchonete, ali próxima, pra conversarmos mais a vontade.
Como eu não tinha nada a perder e a curiosidade fosse grande, aceitei.
Bem que eu gostaria de comer um churrasco com vinagrete e tomar cerveja, mas como não tinha força pra mastigar e tinha que tomar líquidos em pequenos golinhos, pra que não fossem parar no pulmão; me contentei com uma empadinha de palmito e um cafezinho com leite.
Enquanto eu comia lentamente, o cara foi explicando o que pretendia. Disse que sabia sobre o que estava acontecendo comigo, do que eu teria que passar até o final e do quanto isso deveria ser desagradável. Que tinha informações de que eu preferiria morrer rápido, antes que a degeneração me transformasse num boneco inerte.
Disse que representava um homem muito rico e poderoso que, no entanto, sofria um dilema que o poder e o dinheiro não puderam evitar.
Pediu que eu compreendesse que o que ele pretendia me fazer, era uma proposta e que eu era soberano pra decidir, No entanto, pedia pra que eu analisasse a proposta com serenidade e racionalidade, pois, embora fugisse aos padrões convencionais e pudesse, até, causar repulsa à maioria das pessoas; era suficientemente razoável quando analisada sob a luz da lógica.
Minha ojeriza ao poder, principalmente o oriundo do dinheiro, se encrespou e o impulso de mandar enfiar no rabo qualquer proposta vinda dele, me chegou à ponta da língua. Acho que a tarefa de triturar a empadinha com as poucas forças de que dispunha, me impediu de reagir de imediato e me deu tempo pra decidir ouvir a proposta antes de envia-la para o buraco pretendido.
O cara disse que, considerando minha preferência por morrer antes que a degeneração aumentasse meu desconforto e, de preferência de maneira tranqüila, rápida e sem dor ou qualquer sofrimento; me oferecia essa possibilidade.
“Laranja madura, na beira da estrada, ta madura, Zé, ou tem marimbondo no pé”. O cara não parecia nem um pouco com um bom samaritano, ao contrário, parecia bem esperto e com intenção de conseguir alguma vantagem. Será que queria me vender uma morte confortável, cobrando uma boa grana por isso?
Ficamos um instante nos observando, ele tentando identificar qual seria minha reação e, eu, tentando adivinhar qual o interesse verdadeiro dele. Ao final, perguntei sobre o que teria que dar em troca.
Ele disse saber que eu não era nenhum idiota e que, portanto, não se atreveria a me ofender tentando vender gato por lebre. Que me oferecia a possibilidade de morrer com todo conforto, aparentando morte natural, sem qualquer possibilidade de problema legal, com todo amparo à família. Disse saber que eu era optante pela doação de órgãos, portanto, depois de morto, meu desejo seria cumprido.
Disse que o homem que representava, sofria de uma doença cardíaca e precisava de um transplante de coração com urgência. Que a fila de espera era grande e que era difícil encontrar doadores compatíveis com ele, o que diminuía bastante suas chances de conseguir o transplante que poderia salva-lo. Portanto, meu coração seria o pagamento pelo serviço recebido.
A proposta era razoável e atendia plenamente minha vontade, no entanto, minha ojeriza ao poder de compra me causava repulsa e não pude evitar dizer isso ao cara.
Ele disse compreender, mas argumentou que as coisas eram assim e que, gostássemos ou não, era infrutífera qualquer luta contra o poder e os poderosos. Ele argumentou não considerar aquele um caso de exploração, era uma troca. Eu receberia o que desejava e propiciaria ao outro o que ele necessitava.
Eu argumentei que ele estaria furando uma fila, onde outras pessoas poderiam estar mais necessitadas que ele.
Ele argumentou que eu também estaria furando uma fila, abreviando minha morte que, normalmente, ainda não estava na hora de acontecer.
Ele tinha razão, se eu concordasse, estaria furando a fila, valendo-me do mesmo artifício que o seu patrão.
O cara argumentou que, embora os meios não fossem muito honestos, os fins os justificavam, pois eu me livraria de um sofrimento desnecessário e o homem recuperaria a saúde, sem que alguém sofresse qualquer prejuízo.
Lembrei-o de que havia o problema da compatibilidade. Ele disse que, antes de me procurar, haviam verificado a compatibilidade, sem o que, seria perda de tempo me procurarem; além de terem a informação que, a despeito da minha doença, o coração estava em boas condições.
Perguntei-lhe sobre como haviam conseguido essas informações e ele disse que era confidencial, mas que as fontes eram seguras.
Eu quis saber como conseguiriam a minha morte, sem levantar suspeitas.
Ele disse que tinham uma equipe médica, que estaria de plantão em um hospital, para o qual eu seria levado como vítima de um mal súbito ou coisa parecida. A equipe me atenderia, aplicaria uma droga eficiente e forneceria um atestado de óbito assinado por dois médicos, exigência para possibilitar a cremação.
Argumentei que esse tipo de morte exige autópsia. O que eles fariam para evitar isso?
Ele disse que estava tudo sob controle e que essa formalidade seria dispensada.
Pensei que se houvesse algum problema, eles é que arcariam com as conseqüências, uma vez que eu estaria morto e minha família não tinha como ser acusada de nada. Pensei algum tempo, inclinado a aceitar a proposta de imediato, no entanto, algo me fez pedir um tempo pra pensar. Disse-lhe isso e ele concordou em esperar um dia ou dois dias.
Pedi-lhe um número de telefone ou outro meio que me permitisse procura-lo pra dar a resposta. Ele disse que, para evitar problemas, se encarregaria de me procurar. Despedimo-nos e fomos embora.
Dormir e não acordar mais, que maravilha! Parar de sentir os músculos atrofiando, os movimentos desaparecendo, o aumento da dependência. Deixar de ser alvo de olhares entristecidos, expressando dó, pena e, até, medo. Eram muitas vantagens, aliás, só vantagens. Como recusar uma oferta daquelas?
No entanto, eu me sentia incomodado. Pensar naquilo me causava mal estar. Como não conseguia pensar em outra coisa, o mal estar era constante. Por que? Como algo tão bom poderia causar aquela sensação tão ruim?
A razão me inundava a mente com argumentos apoiando a eutanásia safada; o sentimento acusava insatisfação, sem explicar, sem justificar, só gerando incômodo, mal estar, insatisfação.
O tempo foi passando, enquanto argumentos racionais e sentimentos injustificados se embolavam na mente, gerando pensamentos confusos, contraditórios, numa batalha imbecil, impedindo uma decisão clara e objetiva.
Essa situação não era nova, inúmeras vezes, durante a vida, sofrera com isso. A contradição entre emoção e razão. A razão argumentando, justificando, oferecendo analogias esclarecedoras, enquanto a emoção só provocava sentimentos autoritários, sem qualquer justificativa, gerando vontades que forçavam satisfação a qualquer custo. Aliás, não é que a emoção não argumentava, ela o fazia através de sofismas, argumentos manipulados pra tentar justificar suas pretensões. Era uma argumentação safada, travestida de razão.
Nessa briga de foice entre razão e emoção, a primeira conseguiu destacar seus argumentos, defendendo a recusa da proposta, o que, aliás, atendia a satisfação da emoção.
A previsão do futuro era bastante indesejável. Sentir a incapacidade crescendo, diminuindo a capacidade para as coisas mais elementares, crescendo a dependência dos outros; não era nada agradável. Esperar um fim inevitável, nessas condições, não é nada animador. É um custo muito alto para benefício nenhum.
Não bastasse o custo pessoal exigido, ele se estenderia a outras pessoas, exigindo-lhes sacrifícios, ainda que só ter que presenciar a degradação de um corpo e a feiúra que isso representa. Em mim, isso aumentaria o custo ao ter que perceber ser alvo de pena e dó.
É um custo muito alto!
Porém, quando comparado com o valor das lutas por ideologia, por justiça e pela pregação da solidariedade, em que me empenhei durante todos esses anos; esse custo é muito pequeno.
Aceitar a proposta do cara, seria desvalorizar, anular, todas as lutas em que me empenhei. Mesmo reconhecendo que foram infrutíferas, que resultaram em fracassos; continuo acreditando que o sucesso delas produziria uma convivência menos problemática e mais feliz; portanto foram válidas e não me arrependo de tê-las lutado.
Se não posso fechar minha vida com chave de ouro, não me atrevo a enlamear a história que construí ou, pelo menos, protagonizei.
Pode ser besteira, e acho que é, no entanto, não vou entregar os pontos no último round da luta. O cara que se vire com o seu problema que, do meu, cuido eu e não vai ser o medo de enfrentar um tempo de vida miserável que vai me fazer jogar a toalha.
Nãooooooooooo! Gritei tão alto a resposta à pergunta do cara sobre minha decisão, que acordei.

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