quarta-feira, 20 de agosto de 2008

POBRE RIQUEZA

POBRE RIQUEZA
O cara reclamava da dificuldade pra se ganhar dinheiro e a facilidade com que, o conseguido, desaparecia.
Ele é da classe média, mora num apartamento bem montado e confortável, tem carro novo e não consta que não consiga pagar suas contas em dia.
Pensei na quantidade de vezes em que ouvi esse tipo de reclamação, feita pelos mais variados tipos de pessoas; desde muito pobres, até milionários.
Recordei o que venho constatando há anos: o problema não está na quantidade de dinheiro ganho e, sim, no desejo de consumir muito além do possível. Por mais dinheiro que a pessoa ganhe, será sempre insuficiente se a expectativa de consumo estiver além do possível.
Lembrei de um final de tarde de um sábado, quando dava carona a um amigo, cujo pai fora fazendeiro e fabricante de cordas de sisal na Paraíba. Ele me pediu pra passar em uma favela onde moravam conterrâneos seus, amigos de infância, cujas famílias sempre trabalharam para seu pai.
Esse pessoal ocupava uns cinco ou seis barracos na beira de um córrego e eram todos parentes. Todos trabalhavam na construção civil.
Parei o carro na entrada da viela que dava acesso aos barracos e, logo ao descer do carro, meu amigo foi avistado por um dos conhecidos, que parecia ter ganho o melhor presente do mundo, tal a alegria com que correu pra abraça-lo. Abraçava-o dando pulinhos, apertando-o, soltando e voltando a apertá-lo. Mais parecia uma criança que acabara de receber um presente muito sonhado e que não tinha mais esperança de ganhar.
O Paraíba afastou-o um pouco pra me apresentar e ele me cumprimentou, demonstrando que amigos de pessoa tão querida, mereciam toda consideração e deixou isso claro no aperto de mão e no balançar do braço.
Mandou um menino, que se aproximara, chamar alguém numa vendinha próxima. Gritou uns nomes na direção dos barracos, de onde começaram a sair pessoas que, como ele, corriam pra abraçar o Paraíba.
Fomos quase carregados pra um dos barracos onde mulheres e crianças nos cumprimentavam esbanjando respeito e carinho.
Alguém disse que era necessário comprar cervejas e uma mulher gritou que era preciso providenciar alguma coisa pra comer. Outra, sugeriu que lingüiça era mais fácil e rápido de preparar. Três homens logo saíram pra providenciar o que consideravam indispensável. Outro, chegou empunhando um litro de pinga, pedindo pra dona da casa providenciar copos, o que foi feito de imediato e, num instante, batíamos copos brindando aquele encontro.
Os três, que haviam saído pra providenciar a cerveja e a lingüiça, logo estavam de volta, acompanhados do homem que o primeiro mandara o menino chamar.
Enquanto a lingüiça fritava numa frigideira grande, a cerveja enchia uns copos, a pinga, outros, enquanto as pessoas iam se ajeitando em cadeiras, bancos, sentando no chão ou se encostando nas paredes. A alegria e as demonstrações de carinho não davam sinais de arrefecer.
Quando a agitação deu lugar à conversa, comecei a perceber o tipo de ligação que unia aquelas pessoas, gerando tamanha emoção.
Todos tinham nascido, vivido e trabalhado nas terras do pai do Paraíba, a quem consideravam poderoso e justo. Alguns deles tinham idades próximas a do Paraíba e tinham sido seus companheiros de brincadeiras de criança.
O pai do Paraíba tinha falido, vindo a morrer algum tempo depois, num acidente em que seu carro fora destroçado por um trem em uma passagem de nível. Havia a desconfiança de que fora suicídio. O fato é que a falência do velho provocara a demandada do pessoal que vivia nas suas terras e, boa parte deles, tinha vindo pra São Paulo e morava naquela favela.
Percebi que eles tratavam o Paraíba como se ele ainda fosse o herdeiro de um império, com verdadeiro carinho, mas com o respeito tradicional dos pobres pela oligarquia. Ainda o tratavam como o filho mais novo e mimado do patrão.
Notei que o Paraíba assumia seu papel naquela fantasia e se sentia o patrão poderoso que permite alguma intimidade a seus empregados. Era como uma festa em que os súditos se rejubilam em compartilhar da intimidade do rei. O Paraíba, que já era bastante grande, parecia ter dobrado de tamanho em meio àqueles adoradores, assumindo a grandeza de seu papel e gozando os prazeres de tanta dedicação.
Era estranho ver aquilo, sabendo que o Paraíba vivia numa merda de dar dó. Trabalhava como auxiliar em um escritório, onde mal ganhava pra sobreviver e só desfrutava de algum consumismo porque a namorada, que tinha um bom salário, lhe propiciava. Mesmo assim, ele teimava em fingir que ocupava o pedestal que há muito deixara de existir. Ali, naquele ambiente, ele podia dar vazão à sua fantasia, recebendo a devoção que acreditava merecer.
Poucas vezes, na vida, pude testemunhar tanta felicidade e alegria. Tudo acontecia entre goles de cerveja, talagadas de pinga e nacos de lingüiça frita apanhados com os dedos, que eram chupados pra tirar-lhes a gordura. O cenário era composto por telhado de telhas de cimento amianto, paredes de tijolo, caiadas, sem revestimento, e piso cimentado. Os trajes eram: bermudas, calções, chinelos e camisetas. Tudo isso tinha muito pouca importância quando comparado com a felicidade que dominava o ambiente.
Isso aconteceu há uns vinte anos e nunca mais vi aquelas pessoas. Algum tempo depois, o Paraíba também sumiu e não tive mais notícias dele; no entanto, aquele episódio continua fresco em minha memória, como uma das coisas mais importantes de que participei.
Lembro que, quando a cerveja e a lingüiça chegavam ao fim, eles decidiram ir buscar mais. Fizeram uma vaquinha entre eles, pra pagar o que já havíamos consumido e o que iriam buscar, e recusaram veementemente que o Paraíba e eu contribuíssemos. Lembro que, pelo rateio, o valor correspondente a cada um era menor do que o preço de um almoço comercial. Se o valor não era tão insignificante pra eles, era infinitamente barato quando comparado à felicidade propiciada.
Olhei pro passado em busca de coisas caras que tivessem me proporcionado felicidade. Encontrei o momento em que terminei de pagar a casa que comprara, quando da compra dos carros que adquiri; de quando comprei uma filmadora... é, essas coisas me custaram um bom dinheiro, em relação ao que ganhava.
Se não encontrei muitas coisas que me custaram bastante dinheiro, sobraram lembranças de momentos felizes que, ou custaram muito pouco, ou dinheiro nenhum. Churrascos em casa, na de amigos, sítios e chácaras; bate papos em balcões ou mesas de bar, com amigos; salgadinhos velhos, frios e ressecados, depois de longo período sem nada pra comer.
Nenhum peixe que eu tenha comido em restaurantes de luxo foi tão saboroso quanto as postas fritas em uma frigideira encardida, sobre fogo de lenha, na barranca do rio Grande, onde o peixe acabara de ser pescado e onde eu esperava a balsa pra atravessá-lo. Aquele peixe cortado a facão, lavado nas águas do rio e frito sem a menor preocupação com higiene, foi mais saboroso que o manjar dos deuses. Quando a balsa chegou, o ribeirinho que preparara o peixe, colocou o resto em uma travessa velha, embarcou na balsa e fomos comendo até o outro lado do rio, bebericando pinga em uma caneca feita de uma lata de óleo.
De outra feita, viajando pelo pantanal, por uma estrada de terra, sob um sol escaldante, depois de muitas horas, cheguei ao rio Paraguai, onde precisaria esperar a balsa. Numa barraca à margem da estrada, na beira do rio; postas fritas de pacu, com a carne dourada coberta pela pele pururucada, enchiam a boca de água. Não bastasse aquela visão maravilhosa, o barraqueiro anunciou que tinha cerveja bem gelada, graças a um gerador que permitia o funcionamento de um freezer. Lavar a boca e a garganta com aquela cerveja gelada e degustar aquele peixe fresco, recém saído da frigideira, foi um prazer indescritível.
O prazer de ser solidário, de desfrutar o carinho dos amigos, de lutar por ideais; dispensam pagamento em dinheiro e propiciam muita felicidade. E o amor? Ser amado pela pessoa amada e desfrutar esse amor é impagável!
Alegar que o dinheiro é um mal, que só causa problemas e gera infelicidade é uma burrice imensa. Ele, simplesmente, não passa de um meio para recebermos o que nos é devido e pagarmos o que adquirimos, desvinculando uma coisa da outra. O problema está em considerá-lo capaz de comprar tudo, principalmente, felicidade.
O problema não é o dinheiro e, sim, o consumismo. Este, não só é incapaz de propiciar felicidade, como a dificulta e, até, impede. Aparentar riqueza atrai ladrões e seqüestradores, que causam medo, que impede a liberdade de ir e vir. O dinheiro nos faz desconfiar que o carinho recebido se deva a ele e não a nós. Além disso, o medo ocupa nossa mente, roubando lugar às emoções agradáveis.
O consumismo leva a equipar a casa para propiciar segurança, conforto e, até, luxo. O medo de sair, associado ao conforto caseiro, levam as pessoas a trocar a emoção propiciada pela convivência, pela emoção virtual, eletrônica, contentando-se com imagens e sons, desprezando o calor do contato humano.
A limusine para na frente da igreja tradicional, decorada com sofisticação exclusiva, onde o noivo, suando impaciente, sofre com o pensamento de que algum problema possa impedir a noiva de chegar.
A noiva, que passou horas sendo maquiada, penteada e vestida, teme não estar tão bonita quanto gostaria, que seu visual possa receber críticas ao invés de elogios, que alguma coisa possa sair errada, em fim, são tantas preocupações, que a emoção de estar realizando o sonho de se unir ao homem amado, de concretizar a fantasia de uma cerimônia memorável, fica muito aquém da possível e, não raro, desaparece.
A marcha para o altar é tensa, a incerteza sobre o tamanho e velocidade dos passos, se o buquê deve ficar mais pra esquerda, direita, pra baixo ou pra cima. Não consegue ver os olhares de admiração porque procura expressões de crítica.
Na festa é difícil encontrar sinceridade nos cumprimentos de pessoas preocupadas em não cometer gafes. Os trajes dificultam a liberdade de movimentos, o barulho dificulta conversas e a maioria sai de lá sentindo alívio.
A única coisa indiscutivelmente grandiosa naquela cerimônia foi o preço. Igreja, decoração, músicos, limusine, roupas, salão, bufet, cabeleireiro, maquiador, etc. O custo daquela cerimônia seria suficiente pra pagar muitos meses, talvez anos, de despesas do casal.
Num outro casamento, realizado na igreja do bairro, pouca gente prestou atenção no vestido da noiva, na maquiagem ou no penteado. O que saltou aos olhos de todos, foi o brilho no seu olhar, a emoção que transbordava de todo seu ser, o olhar carinhoso que dirigia aos presentes agradecendo sua presença para testemunhar a realização do maior sonho de sua vida. A emoção do noivo ao recebê-la no pé do altar e, a dos dois, durante a cerimônia que oficializava o maior desejo de suas vidas, provocou os cumprimentos mais efusivos, os mais sinceros desejos de que aquela felicidade se prolongasse por toda a vida, extrapolando as palavras, expressos por lágrimas, beijos calorosos e abraços apertados.
A festa, no salão comunitário do bairro, testemunhou a alegria e felicidade propiciadas pela emoção, dispensando luxos e confortos que, na maioria das vezes, só servem para delapidar-lhe o valor.
Churrasquinho de carne, lingüiça e asinhas de frango, arroz, farofa, salada, maionese com batatas, ovos e legumes cozidos; tudo isso regado a cerveja e refrigerantes. Dança ao som de música que não impedia as conversas e, principalmente, a emoção propiciada pela felicidade dos noivos, pela troca de carinho entre amigos e pelo desejo despertado nos namorados de se tornarem protagonistas de uma cerimônia como aquela.
O muito dinheiro gasto na primeira cerimônia, não garantiu a felicidade, assim como, o pouco gasto na segunda, não a impediu.
Felicidade é alegria, resultante de satisfação de desejos. O dinheiro pode facilitá-la, no entanto, nunca poderá ser fonte geradora e, sua falta, não conseguirá impedi-la de acontecer.
A tentativa de conseguir riqueza não deve impedir o desfrute da felicidade possível, que exige pouco, ou nenhum dinheiro.