terça-feira, 25 de setembro de 2007

A VOLTA ÀS CINZAS

Complemento ao texto Fênix de 17/09/07
Depois de dois anos de apatia, angústia e sem motivação pra nada; quando a única coisa que conseguia fazer era refletir, analisar e escrever; as nuvens se dissiparam, o sol apareceu radiante, prometendo tempos alegres e promissores.
Minha filha, que estava desempregada, conseguiu um emprego em um banco. Quando se preparava para se apresentar ao novo emprego, recebeu um telefonema de uma antiga chefe convidando-a para um trabalho que, segundo ela, seria muito mais promissor que o do banco.
Minha filha foi fazer a entrevista e ficou convencida de que a antiga chefe tinha razão. Comunicou ao banco que não poderia se apresentar e indicou a irmã para a vaga, que foi aceita. Que sorte! As duas conseguiram emprego.
Alguns dias depois, minha filha me ligou, dizendo que o patrão precisaria de uma pessoa para cuidar da reforma de uma mansão que comprara e me perguntou se poderia me indicar para o trabalho. Ela disse que se tratava de uma fundação com o objetivo de financiar projetos de saúde e educação. Que o mantenedor era um pecuarista, pessoa simples e aberta a novas idéias. Que tinha dito a ele de meus projetos na área social e que ele se mostrara interessado. Concordei de imediato e me dispus a ser entrevistado quando ele quisesse.
A entrevista foi marcada para a próxima segunda-feira, as dez horas da manhã, na mansão que seria reformada.
Cheguei as nove e cinqüenta e cinco e fui recebido por um japonês que me fez entrar e aguardar pois o pecuarista se atrasaria um pouco.
Pouco antes do meio dia chegou um homem que viera para fazer orçamento de ar condicionado. O encontro dele com o pecuarista fora marcado para o meio dia.
Pouco depois do meio dia, chegou uma japonesa, esposa do japonês que me recebeu e, a que fora chefe da minha filha no passado. Ela me informou que o pecuarista tivera um imprevisto e que se demoraria mais um pouco.
Logo depois das duas horas o homem do ar condicionado comunicou à japonesa que tinha um compromisso às três horas e que, por isso, seria melhor marcar outro encontro para outra oportunidade. Quando se dirigia para a saída, o pecuarista chegou. Ele voltou e acompanhou o homem numa visita à mansão para tomar conhecimento dos ambientes que deveriam ser condicionados.
O homem do ar condicionado deve ter chegado atrasado ao próximo compromisso pois faltavam menos de quinze minutos para as três quando saiu de lá.
Finalmente chegou a hora da minha entrevista. O pecuarista se desculpou, alegando que era muito atarefado e que, de vez em quando, ocorriam imprevistos e os atrasos eram inevitáveis. Eu estava tão empolgado com a possibilidade de poder trabalhar divulgando minhas idéias, discutindo-as, aprimorando-as, contribuindo para uma sociedade mais justa que, aquele atraso, não me causara qualquer mal.
O pecuarista falou sobre a mansão, que fora construída no final da década de quarenta e que a comprara para ser a sede da fundação. Que pretendia reformá-la e recuperá-la, mantendo o máximo de originalidade. Que pretendia que ela representasse a solidez da fundação, que era totalmente interessada no social, que era mantida com recursos próprios, dispensava colaborações de quem quer que fosse e que era muito rigoroso na aplicação dos recursos destinados aos projetos. Disse que tudo que pudesse economizar reverteria para o social, que era o objetivo da fundação. No entanto, gastaria o que fosse necessário, fazendo questão de pagar o justo, sem exigir sacrifícios de quem quer que fosse.
Ele fumava cigarros de palha, falava manso, mostrando humildade, confessando ter pouco estudo e estar aberto a idéias e sugestões. Tudo isso era apoiado por sorrisos e balanços de cabeça da japonesa. Sua conversa e jeito mostravam simplicidade, embora suas roupas e sapatos deixassem claro o alto preço que teriam custado.
Ele disse que se interessara por meus projetos, mas que, no momento, precisava de alguém que o ajudasse a conduzir a reforma e me pediu para dizer quanto queria ganhar. Pedi que ele dissesse o quanto estava disposto a pagar pois, como estava fora do mercado de trabalho há algum tempo, não estava familiarizado com salários. Argumentei que ele tinha funcionários e que deveria ter uma idéia de quanto poderia pagar, mas ele se negou a fazer qualquer oferta. Insisti em que meu interesse era o trabalho social na fundação e que estava disposto a colaborar da melhor maneira possível para o sucesso da reforma. Ele insistiu e eu, com medo de perder a oportunidade, pedi mil e quinhentos reais por mês, alegando que, depois de demonstrar minha capacidade, voltaríamos a conversar sobre isso.
Ele concordou de imediato e me ofereceu um dormitório na edícula, com televisão de tela plana e refeições. Nessa edícula já moravam dois ajudantes que faziam a manutenção da limpeza e serviços gerais, alem de servirem como caseiros. A edícula tinha três quartos e cada um ocuparia um, com total privacidade. Adorei a idéia, pois não gastaria tempo com idas e vindas de casa, com o que economizaria umas três horas por dia. Além disso, não gastaria com condução nem com comida. Achei ótimo!
Depois de tudo acertado, ele me intimou a acompanhá-lo ao escritório. Pegamos um táxi e nos dirigimos para lá. A japonesa continuou nos acompanhando. Ela seria a minha superiora, a quem eu deveria me reportar, embora ele tenha dito que eu teria toda a liberdade de procurá-lo pessoalmente ou por telefone a qualquer hora do dia ou da noite.
O escritório ficava em um prédio e estava atulhado de caixas de papelão empilhadas. Soube que estavam de mudança para a mansão o que aconteceria no dia seguinte, depois do expediente. Me apresentaram mais três japonesas e um rapaz que era o motorista. O marido da japonesa e minha filha completavam o pessoal.
As oito da manhã do dia seguinte, cheguei à mansão carregando uma bolsa com roupas de cama e pessoais.
A japonesa chegou logo depois e lhe perguntei se tinha alguma instrução para mim. Ela disse que eu poderia fazer o que me parecesse melhor. Ela me entregou uma planta da mansão e verifiquei que era um levantamento atual e não o projeto original ou da reforma.
Antes que eu começasse a vistoria, a japonesa me convocou para uma reunião com ela e os dois rapazes que trabalhavam como caseiros. Informou-os que eu moraria e comeria com eles. Disse que eles não podiam sair da mansão, nem de dia nem de noite. Que tinham uma folga a cada quinze dias. Disse que eu teria que obedecer a essa regra. Minha reação foi imediata, disse-lhe que aceitara a moradia e as refeições, mas que isso não me transformaria num prisioneiro. Que se a condição fosse essa, eu abriria mão desses benefícios. Ela ficou de conversar com o pecuarista a esse respeito.
Quando, na hora do almoço, disse-lhe que precisaria sair para comprar produtos de higiene pessoal, ela fingiu não ouvir e, quando insisti, concordou, demonstrando grande contrariedade, voltando a dizer que conversaria com o pecuarista a respeito.
Depois de conversar com ele, entregou-me um bilhete escrito de próprio punho por ele, dizendo que: se eu saísse à noite, só poderia retornar no dia seguinte, que ele não pagaria almoço fora dali e que, se saísse na hora do almoço, deveria assinar um livro de ponto, na saída e no retorno, não sendo admitido nem um minuto de atraso.
Aquilo me pareceu um absurdo, total desrespeito aos direitos de um funcionário, no entanto, preferi considerar como uma excentricidade que, com o tempo, eu conseguiria modificar.
Percorri a mansão com a planta para me familiarizar com ela, anotando detalhes que me chamaram a atenção. Era evidente a deterioração da tubulação de água, causada pela corrosão. A instalação elétrica também se mostrava inaproveitável. Além do mau estado dos fios, era visível a deterioração das tubulações pela corrosão. Tubulações novas implicariam em agressão a revestimentos de pisos e paredes. O problema é que eram materiais impossíveis de serem encontrados para reposição.
Quando chegou um telhadista para orçar a reforma da cobertura, acompanhei-o na vistoria. A estrutura de madeira estava em perfeitas condições. Era madeira de lei sem qualquer sinal de deterioração. Mais de noventa por cento das telhas estava em bom estado. Como seria difícil conseguir telhas iguais, poderiam ser usadas as telhas da edícula para repor as defeituosas no telhado principal, colocando-se telhas novas só na edícula.
Quando nos reunimos com o pecuarista, ele foi categórico na exigência da troca de todas as telhas, colocação de manta sob elas e troca das ripas. Argumentei que a simples reposição de telhas propiciaria uma durabilidade de dez anos ou mais ao telhado. Ele se manteve irredutível e insistiu na troca total das telhas e colocação de manta. Era razoável, afinal, a troca total propiciaria uma durabilidade bem maior, embora causasse um custo bastante alto.
A noite chegou e a mudança do escritório não chegava. Avisei a japonesa que eu estaria na edícula e que mandasse me chamar se precisasse.
Quando a mudança chegou eu já estava dormindo. O pessoal saiu de lá por volta das duas da manhã.
No dia seguinte, fiz um relatório de tudo o que havia observado. Sugeri a confecção de um projeto executivo onde seriam registradas as alterações. Ele serviria de base para a confecção dos projetos de eletricidade, hidráulica, telefonia, ar condicionado e de dados. Possibilitaria a quantificação de serviços e materiais. Um memorial descritivo complementaria a documentação de comunicação da obra, evitando dúvidas e mal entendidos.
Imprimi o relatório e entreguei-o para a japonesa. Mais tarde, ela me perguntou se o relatório estava completo. Disse-lhe que ele era resultado das observações feitas até ali. Que precisava de informações para prosseguir. Ela disse que poderia me dar as informações, no entanto, não conseguiu responder objetivamente a nenhuma de minhas perguntas. Disse que o pecuarista só conversaria comigo quando o relatório estivesse completo.
Ficou claro que ela, não só era arrogante, mas de grande prepotência. Fiz algumas modificações estéticas no relatório e disse que estaria completo, acreditando que isso me possibilitaria conversar com o pecuarista e tentar convencê-lo da necessidade do projeto, onde se registrariam os serviços a serem executados.
Na segunda-feira, o pecuarista havia me entregado uma planilha onde estavam listados os trabalhos que ele achava necessários para a reforma. Era uma listagem muito simplória, sem considerar as dificuldades, mas, principalmente, omissa quanto a trabalhos indispensáveis. Na terça-feira, logo que chegou, a japonesa me pediu a planilha que o pecuarista havia me dado no dia anterior, alegando que ele queria que eu fizesse um relatório sem a influência da planilha.
A reunião entre o pecuarista, a japonesa e eu, ocorreu no dia seguinte. Logo no início, a japonesa me entregou uma nova planilha, parecida com a que o pecuarista havia me dado no primeiro dia. Para minha surpresa, ela continha muitos serviços que não constavam na primeira e que constavam de meu relatório. O pecuarista começou dizendo que revisara a planilha e a havia atualizado. Passou a ler meu relatório, item por item, demonstrando grande falta de conhecimento e comentando, a cada pouco, que muitos dos serviços que eu apontara como necessários, constavam da sua planilha, como quem diz que eu não apresentara grandes novidades.
Quando ele leu o item sobre a necessidade de um projeto executivo, repeliu-o, alegando que era desnecessário e que ele daria qualquer informação necessária, pois sabia tudo o que deveria ser feito. Ele falava com humildade, demonstrando a maior das prepotências. A japonesa o apoiava com gestos e palavras.
Ele estava preparado para fazer várias críticas a indicações que eu fizera no relatório, no entanto, isso se baseava em interpretação errônea que, quando eu esclarecia, perdiam o fundamento.
O mais impressionante era o desconhecimento ou desprezo que ele demonstrava pelas dificuldades que deveriam ser resolvidas. Falava em trocar tubulações sem maiores prejuízos a revestimentos de pisos e paredes. Falava em troca de materiais que não podem ser encontrados, como se estivessem disponíveis em qualquer esquina.
Percebi a dificuldade que eu teria para convencê-lo do quanto estava enganado, para mostrar-lhe as dificuldades que teriam que ser enfrentadas. Essa dificuldade se agravava pela interferência da japonesa apoiando-o, fazendo-o crer que era um grande especialista e que só precisaria de alguém para transmitir as orientações que ele daria.
No início, considerei que a reforma seria como muitas que ocorrem em mansões daquela região, adaptando o prédio para a instalação de escritórios, sem maior profundidade. Ao perceber o que o pecuarista pretendia, reformando totalmente e em profundidade; ficou evidente a insanidade de ter mudado o escritório para lá. Isso exporia funcionários e equipamentos a todo tipo de agressão causado por esse trabalho: sujeira, barulho e grande movimentação de pessoal estranho ao funcionamento do escritório. Mudar o escritório para o que se transformaria em uma obra, sem dúvida, era um verdadeiro despropósito! Todos se mudam para reformar o imóvel que ocupavam. O pecuarista mudou seu escritório para uma reforma, para uma casa que passaria por enorme rebuliço durante longo tempo.
Na tarde de sexta-feira, avisei a japonesa que eu não dormiria lá. Perguntei se precisaria de mim no sábado. Ela disse que marcara um orçamento para descupinização. Argumentei que eles já haviam recebido vários orçamentistas, sem a minha interferência e que não via necessidade que eu estivesse lá para receber esse. Ela não discordou.
Quando minha filha saiu, por volta das oito e meia da noite, sai com ela. Comuniquei-lhe o que estava acontecendo e preveni-a de que dificilmente eu poderia continuar aquele trabalho. Aconselhei-a a começar a procurar outro emprego, pois ela não agüentaria muito tempo ali. Ela concordou e confessou que já estava chegando no limite. O pecuarista não respeitava ninguém. Exigia tudo dos outros e não admitia ter qualquer dever. Era extremamente prepotente e egoísta, travestido de humildade e solidariedade.
Passei o final de semana pensando em alguma maneira de reverter a situação, convencendo o pecuarista de que estava errado e que enfrentaria grandes e profundos problemas. Não consegui qualquer estratégia que possibilitasse isso.
Na segunda-feira, cheguei as sete horas. O caseiro que ficara de plantão no final de semana, me comunicou que, ao limpar uma mesa, quebrara um cinzeiro. Que isso deveria ser comunicado à japonesa, caso contrário, ela seria capaz de qualquer coisa. Na sexta-feira, ela me encarregara de administrar o trabalho dos dois caseiros, orientando-os no trabalho, fiscalizando-os e relatando para ela o que fizessem.
Por volta das dez horas, ela me convocou e aos dois caseiros para uma reunião. Contei-lhe sobre a quebra do cinzeiro e ela se mostrou assombrada, não entendendo como alguém poderia quebrar um cinzeiro. Quis saber como aquilo tinha acontecido. O rapaz disse que, ao limpar a mesa, esbarrara no cinzeiro e ele caíra no chão, quebrando-se. Ela, irritadíssima, dizia que aquilo era um absurdo, que não era possível que alguém derrubasse um cinzeiro sem querer. Demonstrava sua irritação repetindo sua incredulidade, várias vezes. Acabou por dispensar os dois, para continuar a reunião só comigo.
Começou dizendo que o pecuarista achara meus relatórios muito resumidos. Que queria que eu detalhasse mais, desse mais informações. Quando perguntei que tipo de detalhes ele pretendia, ela não soube dizer, só repetindo que queria mais detalhes.
Aquela expressão arrogante e a voz esganiçada repetindo despropósitos, fizeram minha paciência chegar ao limite. Senti vontade de esquartejá-la, livrar o mundo de tamanha prepotência e insensatez!
Era uma déspota, aproveitando a ignorância do pecuarista para satisfazer seu desejo de poder, tripudiando sobre todos, sem o menor respeito pelos subordinados. Ela apoiava o desejo de onipotência dele, incentivando-o nos seus devairíos, ao que ele retribuía dando-lhe o poder que acreditava ser propiciado pelo dinheiro. Acreditavam na onipotência do dinheiro e se julgavam no direito de não considerar qualquer outro valor que pudesse intervir no julgamento de suas vontades.
Respirei fundo, procurei controlar a revolta que se apossava de mim, considerando os prejuízos que minha filha poderia sofrer caso eu me deixasse dominar pela vontade que me impelia a reagir a altura do comportamento da japonesa. Disse-lhe que eu refletira muito no final de semana e concluíra que não estava a altura do trabalho que eles pretendiam de mim. Portanto, eles deveriam procurar alguém que pudesse se enquadrar no que eles pretendiam.
Quando o pecuarista chegou, a japonesa comunicou-lhe minha decisão e ele aceitou a decisão de imediato, mandando dispensar-me sem demora.
Juntei minhas coisas e saí de lá como quem se livra de uma câmara de tortura.
Foi uma pena! Eu poderia ajudá-los com minha experiência sem frustrar o desejo de poder deles, viabilizando seus desejos, compatibilizando-os com a realidade. Poderia contribuir com os projetos sociais da fundação, disponibilizando minhas idéias, produto de longas reflexões e análises de dados captados durante muitos anos. Eu teria oportunidade de me sentir útil, ganhar a sobrevivência com prazer e dignidade. Por causa da irracionalidade, do domínio de vontades incontroladas, influenciadas pela vaidade; o que poderia ser fonte de satisfação prazerosa transformou-se em manancial de problemas, causando sofrimento e prejuízos, prometendo acentuar-se e atingir grande número de pessoas.
O incrível é que pessoas como o pecuarista e a japonesa não percebem que o efeito de suas ações é diametralmente oposto ao que desejam. Ao invés de conseguirem reconhecimento e admiração, granjeiam desprezo e revolta. O dinheiro só consegue camuflar a realidade, mostrando como aceitação e admiração, o que não passa de rejeição e repúdio.

Me mande um e-mail pepe.granja@hotmail.com

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